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UMA ANTOLOGIA ALÉM DO CÂNONE


(arte: Hallina Beltrão)

Há alguns meses atrás, discursando nas Nações Unidas, a romancista Chimamanda Adichie disse que em sua língua (igbo) a palavra amor é ifunanya, e sua tradução literal é VER: “Gostaria de sugerir hoje que este é um tempo para uma nova narrativa, uma narrativa em que nós realmente possamos ver aqueles sobre quem falamos”, afirma a escritora nigeriana, partindo de sua língua para dizer um tempo presente, trans-atlântico.


O olhar, como tessitura de afeto, sem mediações à representação, acende em Olhos de azeviche. Água doce que lava os olhos, podendo dilatar pupilas de quem sempre se vê refletido no cânon – pois, no cenário literário brasileiro altamente conservador e elitista, ver exige fraturar os espelhos eurolimitados de narciso.


Publicada pela editora Malê, com apresentação de Fernanda Felisberto sob o título “Selfie: Eu Mulher Negra Escritora”, a antologia já nasce histórica. Dez autoras negras reunidas em livro, encrespando um corpo-corpus diferente das diversas antologias disponíveis no mercado editorial, nas quais a política subjazendo seleções segue afirmando os velhos silenciamentos que atravessam o literário no Brasil. A mais recente, lançada pela Companhia das Letras e organizada por Adriana Calcanhotto, propõe um recorte do nosso tempo que se abstém de vozes negras ou periféricas – um “agora como nunca” anacrônico, monocromático.


A maioria das autoras reunidas em Olhos de azeviche tem obras individuais em circulação crescente de público e crítica. Diversos contos não são inéditos, mas inédito é o encontro dessas vozes em livro. São elas: Ana Paula Lisboa, Cidinha da Silva, Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Esmeralda Ribeiro, Fátima Trinchão, Geni Guimarães, Lia Vieira, Miriam Alves e Tais Espírito Santo.


Dez escritoras negras que estão renovando a literatura brasileira – eis o portentoso subtítulo da antologia. Renovando: gerúndio com tom imperativo, verbo bom para pontuar essa desejada circulação de ares na literatura brasileira. Por qual razão textualidades que articulam gênero e raça como lugar de enunciação teriam a pujança de renovar a literatura nacional?


O gerúndio dá pistas, com seu feitio de ação contínua. A escrita se insurge no corpo de suas autoras, por mais que preexista um corpus canônico que sempre o negou. Por isso mesmo, o sentido potente do subtítulo sugere o gosto de um novo tempo em feitura, fortalecendo a fratura no uníssono de vozes (masculinas, brancas, das classes dominantes) que majoritariamente narram a literatura brasileira.


A inscrição autoral do corpo negro no discurso literário funda novas sintaxes, porque tangencia a ficcionalização da experiência de sujeitos que estiveram por muito tempo exclusos da ordem discursiva – escritos nela como meros objetos. Novas sintaxes, de vozes desemparedadas, propondo outras perspectivas de ver o humano - quiçá capaz de tecer uma política das suas próprias potências.


São 20 contos e mundos a mais, cada qual alinhavando um ponto de acesso. As narrativas nos levam a uma estrada cognitiva de muitos enredos, cuja porta de entrada é amorosa, porque o afeto, sempre bom lembrar, é revolucionário: “Preta, a saudade tem a sua cor (...) eu só passei pra dizer que te amo. Você ainda é minha festa”. Afeto-grafia de Ana Paula Lisboa.


Seguindo as páginas, ouvidos atentos em Trutas, trilha sonora dos Racionais MC’s riscando a arma lírica de mais um rapaz comum da periferia. Igual aqueles outros cinco, Os meninos do morro do lagartixa, cinco jovens que saíram animados para comemorar o primeiro salário de um deles, sem saber do trecho Negro Drama que lhes esperava covardemente emboscado dentro de uma viatura policial - “Olha quem morre, então veja você quem mata. Recebe o mérito, a farda, que pratica o mal, me ver pobre preso ou morto, já é cultural”. Os meninos, corpos negros furados com 111 tiros disparados pela polícia num dia comum em São Paulo, são os personagens com nome e sobrenome da ácida crônica de Cidinha da Silva, tomando a narrativa como espaço de luto e de luta.


Conceição Evaristo está presente na antologia com os contos Di Lixão e Amores de Kimbá. Escritora conceituada, recentemente contemplada com o prêmio Faz diferença – O Globo, com seu mais novo livro de contos Histórias de leves enganos e parecenças e em 2015, premiada com o Jabuti na categoria contos pela obra Olhos d’água. Evaristo escreve poemas, contos, romances, e é doutora na área de Literatura Comparada. Seus livros têm sido traduzidos e publicados fora do país e angariado uma fortuna crítica crescente. Ela tem constituído um lugar autoral contra-hegemônico dentro do edifício literário nacional, formalizando o conceito de escrevivência em seus textos: “A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ‘ninar os da casa-grande’ e, sim, para incomodá-los em seus sonos injustos”.


A voz, formalizando espaços de liberdade para os organismos, ressoa em Pixaim, conto em primeira pessoa de Cristiane Sobral, lembrando que o cabelo, para além da moda e da estética, é a superfície que mais intensamente performatiza as políticas de representação afirmativa e de amor-próprio para as mulheres negras: em cada enredo capilar, uma arena cotidiana. “O meu cabelo era a carapaça das minhas ideias, o invólucro dos meus sonhos, a moldura dos meus pensamentos mais coloridos”, diz a personagem, num fértil diálogo com o texto de Alice Walker “cabelo oprimido é um teto para o cérebro”.


Sem teto para a ficção, em Guarde segredo, Esmeralda Ribeiro ressuscita o escritor Lima Barreto, reescreve seu personagem Cassi Jones, e afia as facas de Clara dos Anjos, que deliciosamente vinga muitas mocinhas sem agência de tantas histórias do nosso cabedal literário. O romance Clara dos Anjos, de Lima Barreto, é uma forte denúncia do preconceito racial da sociedade, vivenciado por uma jovem mulher negra do subúrbio carioca. Encantada pelo canalha Cassi Jones, que a seduz e abandona grávida e humilhada, Clara é vítima de violentos preconceitos de uma ordem social sexista e estruturalmente racista. Sua trajetória é de tamanho emparedamento, que, ao final do romance, como se falasse em nome de todas as mulheres em iguais condições, conclui em desespero: “— Nós não somos nada nesta vida”. Aí que, pensando a literatura em ato, ressalta o gesto do conto de Esmeralda Ribeiro: criar um lugar de agência para o feminino negro, que guerreia com quem queira lhe destruir a existência. Facas afiadas, avocar o contemporâneo como episteme pode ser um mecanismo instigante de ler o passado. Armada das palavras de Esmeralda, Clara dos Anjos mata Cassi Jones às facadas. Final feliz? Redenção? Não se trata disso. Mas, sim, da abertura para outros matizes, outras paisagens imaginárias possíveis, que concebem a feminilidade negra inscrita em personagens que são sujeitos de seus desfechos.


Esse olhar azeviche também repousa na experiência da criança negra. De Geni Guimarães, dois fragmentos do livro de contos Leite de peito (1988), estão republicados na antologia. Em Primeiras lembranças, ouvimos uma conversa entre mãe e filha: “Mãe, se chover água de Deus, será que sai a minha tinta?”. Numa narrativa contínua, Metamorfose põe a infância negra em perspectiva a partir do processo de violência subjetiva que vinha ligado ao acesso à escolarização. A menina, protegida pelo amor da família, um dia vai pra escola e lá percebe “que a narrativa da professora não batia com a que nos fizera a Vó Rosária. (...)” Depois de ouvir o discurso da professora sobre o negro escravo, construído como covarde, submisso e subalterno, a menina amiúda: “Quando dei por mim, a classe inteira me olhava com pena ou sarcasmo. Eu era a única pessoa dali representando uma raça digna de compaixão, desprezo. Quis sumir, evaporar, não pude”. Frases que imediatamente me remetem a outra menina negra de nossa literatura brasileira: a Bitita, com Carolina Maria de Jesus narrando a infância negra no pós-abolição: “As escolas admitiam as alunas negras. Mas, quando as alunas negras voltavam das escolas, estavam chorando. As professoras aceitavam os alunos negros por imposição”.


Lia Vieira, algumas páginas seguintes, vem adoçar de lazer a carne-malícia-coração do leitor em A paixão e o vento e Os limites do moinho, este último uma história de amor em primeira pessoa vivida durante um congresso de escritores em Havana. Texto tátil-amor, temperado. Bom pra quem morde, arranha, dedilha a carne da palavra encontro.


Miriam Alves, autora do romance Bará, na trilha do vento (2015), está presente na antologia com os contos Os olhos verdes de Esmeralda e Alice está morta, que traz um Orfeu revisitado. Textos de apurada tessitura, com personagens femininas complexas e marcantes. No primeiro, linhas de amor lésbico escrito entre duas mulheres negras, Esmeralda e Marina, alvos de uma sociedade homofóbica, constituída, nos termos de Judith Butler, por uma matriz heterossexual que gera os padrões reconhecidos de inteligibilidade dos gêneros, e todo o tempo pratica o alterocídio. Entre beijos, amassos, juras, companheirismo e entrega, o amor encontra seus jeitos. Mas, um dia, o amor cruza uma viatura policial. Os olhos verdes de Esmeralda já havia sido publicado em Mulher Mat(r)iz – Prosas de Miriam Alves (2011). Nas linhas do conto, a vista do cotidiano contemporâneo – violento, machista, homofóbico, racista – revela a mesma sociedade que matou Luana Barbosa no ano passado, uma mulher negra, jovem, mãe, estudante, lésbica, brutalmente assassinada por policiais militares no interior de São Paulo. Certas narrativas precisam ser retidas na memória, vertidas em metáfora. Olhe o real (literário) ao seu redor: quais vidas importam?


Olhos de azeviche, vias de afeto. O que este olhar diz de seus espelhos? O que diz de nós? Do tempo que vivemos? Lava, lacrimeja os olhos. Dilata as pupilas. Amplia as miras.

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