'Bar é o termômetro que mede a febre africana', diz Alain Mabanckou
Escritor congolês lança seu novo livro, 'Copo quebrado', no Rio nesta segunda.
O escritor congolês Alain Mabanckou prova uma cachaça em um loja de Paraty Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
PARATY — Levado pelo GLOBO a uma loja de bebidas no centro comercial de Paraty, o escritor franco-congolense Alain Mabanckou fica em dúvida se deve ou não posar para uma foto segurando uma dose de Gabriela, a famosa cachaça local, batizada em homenagem a um romance de Jorge Amado que o autor adora.
— Mas não vai parecer que os africanos são todos beberrões? — pergunta o escritor, uma das principais atrações da 16ª Festa Literária Internacional de Paraty, temendo que a imagem perpetue, do lado de cá do oceano, estigmas de seu continente natal.
Finalmente, ele decide dar alguns goles ("Uau, essa bate forte!", exclama), e deixa cair o copo, que se espatifa no chão do estabelecimento comercial. A imagem agora é outra. No movimento, aparentemente involuntário, desenha-se o título do seu segundo romance publicado no Brasil, "Copo quebrado".
"ALCÓOLATRAS LITERARIOS"
O livro está sendo lançado em Paraty, onde Mabanckou participou na sexta-feira de uma das mesas mais animadas e disputadas do evento . Na segunda, 30, é a vez do lançamento no Rio, com um bate-papo do autor na Biblioteca Parque do Centro, às 20h, dentro da programação da Flip-Flup.
A obra traz relatos deliciosos de beberrões de um bar fictício no Congo chamado O crédito Acabou. Quem os recolhe é Copo Quebrado, o sedento mais assíduo do bar, e encarregado pelo dono do estabelecimento de registrar para a eternidade as histórias de seus clientes.
Perguntado se a premissa não poderia reforçar os mesmos estigmas que ele temia com a foto, Mabanckou, 52 anos, autor de mais de 20 livros de língua francesa, entre ensaios, poesia, contos e romances, é categórico.
— Não, porque os meus alcoólatras são literários — explica. — Eles têm uma língua, têm um universo... São pessoas felizes em seu mundo. E são luminosos porque, num pequeno bar, de um bairro ferrado de uma cidade ferrada, conseguimos ter a pintura social de uma África.
Para o escritor, basta olhar no interior de um copo para saber que o seu continente vai mal.
— Para saber o que acontece na África, você não vai a uma universidade, você vai a um bar. Lá você sempre encontrará um doutor que não terminou sua tese, um músico que tentou se firmar na França e não conseguiu... O bar é um laboratório, um termômetro com o qual se mede a febre africana.
Alain Mabanckou e seu copo quebrado em Paraty Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
"Copo quebrado" é um romance mais leve que o último publicado por aqui, "Memórias de porco-espinho" , uma fábula perspectivista inspirada no folclore do Congo. Mas nem por isso as histórias reunidas no livro deixam de lado as questões de identidade caras ao autor, um verdadeiro globe trotter literário que nasceu no Congo, viveu 17 anos na França e hoje ensina literatura na Universidade da Califórnia, Estados Unidos. Seus beberrões falam sobre as cicatrizes da imigração, o vai-e-vem entre a França e o Congo, e o complexo diálogo entre colonizados e colonizadores. O que é ser africano, afinal? E como o continuar sendo quando se expressa na língua daquele que o escravizou? O que significa essa aliança?
São perguntas que nortearam sua mesa na Flip. O vencedor do prestigioso prêmio Renaudot falou sobre a seleção francesa campeã do mundo com um time repleto de imigrantes, sobre as relações entre Brasil e África, e a vida de um escritor negro dividido entre diversos países. Alto e atlético aos 52 anos, como um estilo elegante e todo próprio no figurino ("Para nós, no Congo, se vestir faz parte da nossa identidade, do que nós somos", disse em sua mesa), chamou a atenção nas ruas de Paraty.
ÁFRICA NÃO É SÓ ORALIDADE
Logo no início de "Copo quebrado", ele desmonta velhos clichês sobre a cultura africana, como a de que suas únicas narrativas são as que passam oralmente de pai para filho. O condescendente bordão "Na África, quando um velho morre, é uma biblioteca que queima" é visto como piada pelo dono d'O Crédito Acabou, que só acredita no que está escrito porque palavras são "fumaça negra, xixi de gato selvagem". O livro, no entanto, é narrado numa linguagem próxima da oralidade, sem pontuação, sem respiro (é preciso tomar fôlego entre cada parágrafo).
— A instalação de um bar é a antítese da definição que dávamos até pouco tempo para a literatura — diz Mabanckou. — No imaginário dos europeus, nós africanos somos bonzinhos, contamos as histórias das nossas avós. Sempre se viu o continente africano como o da oralidade. Bom, Copo Quebrado é o contrário dessa percepção, mas ele tenta celebrar a literatura escrita usando uma linguagem oral em seu interior. Então, existe esse paradoxo no livro, de que a literatura oral precisa estar em harmonia com a escrita.
'OS NEGROS NÃO DEVEM SER ESPECIALISTAS EM RACISMO'
Um paradoxo que se estende à trajetória de Mabanckou, um autor que discute as tensões coloniais e celebra suas raízes, mas sem nunca se distanciar da língua e da cultura que o alimenta. Uma obra que, por si só, promove um diálogo às vezes triste, às vezes cômico, mas sempre surpreendente entre raças e suas diferentes relações de poder.
— Os negros não devem ser os especialistas da questão do racismo — diz Mabanckou. — É o que digo nos meus romances: você não pode passar sua vida chorando sobre os vestígios da escravidão a qual você foi submetido. Também é preciso se ocupar do presente.