Um passeio no Tapete Voador (Malê), livro de contos de Cristiane Sobral: identidade, negritude e per
Carioca, atriz, diretora do grupo teatral Cabeça Feita desde 1998, cantora, pesquisadora e professora de teatro negro, mestre em Artes pela UnB, mãe de Malick e Ayana, Cristiane Sobral acaba de lançar seu quarto livro, intitulado O tapete voador, sua primeira publicação pela editora Malê. Autora consagrada na escrita de mulheres negras em todo território nacional, Sobral tornou-se acadêmica imortal em 2014 pela Academia de Letras do Brasil (DF). O tapete Voador reúne dezoito contos e apresenta como imagem de capa uma linda adaptação da obra “Odara”, produzida por Muha Bazila, que já sinaliza e aponta para os conteúdos existentes na obra, uma das temáticas e preocupações recorrentes da autora: questões ligadas à identidade e pertencimento étnico-racial, via estética negra e o cabelo crespo como símbolo de identidade. Estes assuntos estão, marcadamente, presentes nos contos: O tapete voador, Pixaim e Metamorfose.
O tapete voador trata do racismo e imposições estéticas no mercado de trabalho. Pixaim, um clássico na literatura negro-brasileira¹, compartilha memórias da infância de uma criança negra e a sua luta para permanecer com o seu cabelo crespo ao natural, diante de sucessivas tentativas de alterá-lo via processos químicos produzidos pela indústria cosmética. Em Espelhos negros temos uma narrativa que apresenta um processo de construção identitária negra que passa por (auto)conhecimento, (auto)rejeição, (auto)aceitação e (auto)realização. Processos como não aceitação e (auto)rejeição, por sua vez, são encontrados, também, em Metamorfose.
Para além destes recortes, podemos encontrar, também, histórias de enfrentamento e combate ao racismo cotidiano - vivenciadas pelo nosso povo negro - de forma mais ampla e violenta. São elas: Elevador a serviço; A Discórdia do meio, O limpador de janela e Memórias.
A autora faz uso, ainda, de uma afiada e cortante ironia para explicitar as agruras históricas pelas quais passamos initerruptamente, a exemplo dos estereótipos, os mais diversos, sobretudo para com os nossos corpos negros, quase sempre concebidos como corpos de uso desde o processo desumano de escravização. Para além da denúncia de objetificação e hipersexualização do corpo negro feminino e sua complexa subjetividade, a autora busca abordar a forma como a corporalidade negra masculina foi, também, estigmatizada, como pode ser notado nas narrativas denominadas Lélio e Afrodisíaco.
A solidão da mulher negra é contemplada como temática nos contos Olga, Lulília e Vox mulher, ainda que nessa última história a protagonista busque independência e a auto-gestão do corpo e da sexualidade.
Infância negra, pobreza e sonhos são abordados nas narrativas a seguir: Bife com batata frita que conta a difícil existência de Ióli. Neste conto, ela desejava e sonhava tão somente com uma mãe e refeições dignas. Em O galo preto, a autora traz Ióli, novamente, em condições adversas de sobrevivência. Sonhos e desejos não realizados são partilhados, também, no conto Flor.
O ineditismo surpreendente foi acompanhar como leitora, desde o início dessa fértil escritora, a transição de personagens e passagens bíblicas do seu primeiro livro de contos para um cenário distinto deste, apostando, agora, em contextos de religiosidades pertencentes as matrizes africano-brasileira, a exemplo de Renascença, conto que encerra o livro. Essa narrativa, especificamente, encontra-se impregnada de uma força que remete a tempos imemoriais e revela uma entrega por parte da personagem que acaba por arrebatar os leitores, roubando-lhes o fôlego e emocionando-os profundamente e em definitivo quando acompanham a jornada da protagonista, Teresa, conforme destacado no seguinte trecho: “No terreiro, selou os seus laços espirituais e o compromisso com a ancestralidade. Ela renasceu em um local onde reinavam o orgulho das matrizes africanas, os mistérios da natureza e o corpo negro totalmente integrado, sem maniqueísmos de bem e mal”.²
O leitor se surpreenderá com os tons, matizes e paragens outras partilhadas e se sentirá banhado pelas águas ancestrais do outro lado do Atlântico, que sempre foi negro e que, vez por outra, vê-se mesclados com o nosso èjè, sangue. O conto Nkala: um relato de bravura está ambientado no continente africano, especificamente no reino do Congo, e narra processos de travessia nos tumbeiros durante o período de tentativa de desumanização dos nossos pelo tráfico negreiro.
O que se pode notar, ao encerrar a leitura dos dezoito contos, é que as personagens e narradores apresentados exigem respeito e dignidade sem pausa ou descanso. Ainda podemos constatar que os direitos arduamente conquistados por todos aqueles que nos antecederam, apesar de testados, constantemente pelo opressor, não são negociados.
O desejo especial, como leitora que acompanha com regularidade a produção dessa frutífera autora, é de que, para muito além dos leitores que Sobral vem conquistando ao longo do tempo, oxalá, educadores possam conhecer a obra e pensar maneiras múltiplas de utilizá-la em sala de aula e para muito além dela.
Essa escrita negra precisa ser concebida como uma rica e complexa ferramenta que pode e de fato auxiliar em processos de emancipação e empoderamento. Vale mencionar ainda que essas grafias pretas se configuram como fonte indispensável para o letramento preto dentro e fora dos muros da escola, tão importantes para nossos meninos e meninas na caminhada do torna-se negro (a). ³
Àse!
REFERÊNCIAS:
CUTI (Luiz Silva). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.
SOBRAL, Cristiane. O tapete voador. Rio de janeiro: Malê, 2016.
SANTOS, Neusa Souza. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
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Hildalia Fernandes é mestre em Educação e Contemporaneidade pelo PPGEDUC/UNEB, docente da Faculdade D. Pedro II nos cursos de Letras e Pedagogia responsável pelo componente curricular: Fundamentos e Metodologia do Ensino da História e Cultura afro-brasileira e indígena, aprendiz de contista, pesquisadora sobre escrita de mulheres negras pela diáspora e é, ainda, Erva Doce na capoeira regional.