Afrofuturismo: literatura e arte
Foto: Marco Antonio Fera.
O escritor Fábio Kabral conversou com a Revista A! sobre afrofuturismo, literatura e o livro O Caçador Cibernético da Rua Treze, que vai lançar em 2017 pela editora Malê.
Discutir a História questionando-a sempre foi um dos papéis sociais da literatura. Desta forma, a literatura Afrofuturista põe em cheque a História da escravidão e da dispersão diaspórica.
Com muitos adeptos no mundo em diversas esferas artísticas, esse movimento cultural, surgido na década de 1960 com Sun Ha, ganha cena juntamente com a juventude negra que está ocupando cada vez mais espaços no cenário científico, literário e musical.
Literatura, música, cinema, moda, design são áreas de manifestações Afrofuturistas, que estão muito além dos cabelos descoloridos e coques ou uma roupa sobreposta bacana. Busca-se uma reconexão com a africanidade por uma via afrocentrada, resgatando as cosmologias e mitologias atrelando-as à tecnologia.
O escritor afrofuturista Fábio Kabral, autor da obra afrofuturista Ritos de Passagem, evidencia alguns pontos sobre esse movimento.
1. O movimento Afrofuturista relaciona-se com a ancestralidade africana diaspórica. Seria uma via artística para conjurar o passado de escravidão/maafa, exaltar o passado glorioso do continente anterior ao encontro com os europeus, projetar um futuro honroso e possibilitar a resistência no presente?
R: O tempo é cíclico. Se você mudar o futuro, você também mudará o passado. A ficção é algo real, não fisicamente, mas metafisicamente. A vitória do herói de rosto africano não é contra forças externas, mas sim contra as forças internas que impedem o nosso crescimento. Fortalecer a si próprio por meio da ficção de orientação africana é uma forma de se fortalecer contra as desventuras deste dito mundo real.
2. A escritora e pesquisadora afrofuturista norte-americana Ytasha Wormack afirma que “o feminismo ‘mainstream’ poderia se beneficiar do senso de equilíbrio que o Afrofuturismo tem sobre a expressão. O afrofuturismo é muito inconformado e, às vezes, sinto como se o feminismo ‘mainstream’ quisesse que as mulheres expressassem sua libertação de maneira muito específica”.
A partir disso, você acha que é possível coadunar esse movimento cultural negro com frentes de lutas europeias como o marxismo ou feminismo, entendendo junto a Carlos Moore em Marxismo e a questão racial (2010), em que essas ideologias são, em seu cerne, brancas e excludentes aos negros?
R: Na minha perspectiva, as ditas ideologias europeias não nos contemplam. Pois foram imaginadas para o humano caucasiano, para a perspectiva europeia, que se pretende universal. Porém, não é. Penso que o Afrofuturismo deve se orientar pela Afrocentricidade, em detrimento de se comprometer com perspectivas europeias. Mas essa é apenas a minha opinião.
3. O Afrofuturismo teria um foco afrocentrado? Pensando junto com o Molefi Kete Asante, que entende essa vertente como algo produzido pelos negros e para os negros? A afrocentricidade possui uma agenda negra, portanto, poder-se-ia incluir o movimento afrofuturista como pertencente a essa agenda de positivação e emancipação do povo africano do continente e da diáspora?
R: Conforme disse acima, penso que faz mais sentido que o Afrofuturismo se guie por uma perspectiva Afrocentrada; se não for assim, penso eu, será um mero eurofuturismo com a “inclusão” de pessoas africanas. Chamo de eurofuturismo isso que chamam de futurismo, pois a perspectiva europeia, que se diz padrão e universal, não o é.
4. O Afrofuturismo, enquanto literatura, tem publicações aclamadas pela crítica, principalmente em inglês, como Zulu Heart e Lion’s Blood ambos de Steven Bernes. O mercado internacional tem absorvido esse movimento, e anualmente publicam-se várias obras desta vertente. Entretanto, pouco ou quase nada se traduz para a língua portuguesa. Assim, como você percebe o interesse do mercado editorial nacional em relação a essa corrente literária? Há editoras publicando e traduzindo no Brasil? Você teria algumas obras para nos indicar?
R: Para ser sincero, não faço ideia se o mercado nacional possui real interesse. Vamos dizer que “está na moda” tudo o que envolva a dita “representatividade”, então nesse sentido as editoras e o mercado podem querer acolher obras que simplesmente tenham pessoas africanas como protagonistas e atribuírem-lhe os rótulos que interessam ao imaginário atual que busca promover a dita “luta das ‘minorias’”. No entanto, nenhuma editora ainda edita as obras da Octavia Butler, por exemplo, a verdadeira pioneira e maior expoente deste dito movimento artístico.
5. Enquanto vertente que busca um viés ancestral, qual seria a relação do Afrofuturismo com a espiritualidade? Livros como Eu, Tutuba, feiticeira ou Negra de Salen, de Maryse Condé, percebe-se essa vertente…
R: A ciência, em sua verdadeira origem, ou seja, em sua origem africana, é intrinsecamente ligada à espiritualidade. A ciência que originou todo este mundo sempre foi ligada à espiritualidade e sua separação se deu na Europa e foi imposta a todo o mundo. No entanto, é curioso notar que cientistas atuais de orientação europeia não conseguem mais negar a ação da crença e do espírito em tudo no que diz respeito ao mundo, o que inclui a ciência. Dessa forma, parece-me adequado, senão óbvio, que o Afrofuturismo projete uma alta ciência alimentada e moldada por uma perspectiva ancestral e espiritual.
6. Nomes como Underdog ou Ellen Gallagher movimentam a cena artística no exterior. Quais seriam os nomes brasileiros afrofuturistas enquanto expressão das artes plásticas?
R: Infelizmente, não sei dizer. Não acompanho muito. No momento estou totalmente imerso no meu processo de criação, mas indicaria nomes como Ellen Oléria, OutKast, o próprio Sun Ha, tem discos dele no Youtube.
7. Até que ponto você entende que o movimento Afrofuturista está cedendo à lógica mercadológica? Quando percebemos que a moda abraça e vende esse movimento de cabelos descoloridos, maquiagens azuladas, roupas longas e sobrepostas como algo cool, por vezes, esvaziando o seu significado de resistência?
R: Ainda não enxergo no Brasil o Afrofuturismo cedendo à lógica mercadológica porque ainda é praticamente desconhecido aqui. O que vejo é um interesse por uns e outros que buscam qualquer um que pareça saber um pouco mais sobre para falar em seus blogs e revistas para cumprir as suas próprias agendas. Esquecendo-se do dito significado de resistência. Em última instância, a pessoa faz o que bem desejar. Todos precisam pagar contas, portanto se pessoas africanas lucram de alguma forma com isso, então que seja. Cada um sabe o seu limite e que cada um busque a sua própria perspectiva.
8. A cena musical afrofuturista no Brasil está eclodindo em São Paulo com Senzala Hi-tech ou Afropunk, por exemplo. Como você entende essa ligação do movimento com os grandes centros urbanos como Nova York, Londres e Johannesburgo?
R: Entendo como algo natural. Nós, pessoas africanas, é quem criamos as primeiras cidades, as primeiras civilizações. Se o Afrofuturismo é a pretensão de projetar o nosso próprio futuro, a partir da nossa própria ótica, nada mais natural que pessoas africanas que vivem nos grandes centros urbanos é que tomem a frente para criar elas mesmas a realidade que nós desejamos.
9. O movimento Afrofuturista literário está atrelado a um ato de enfrentamento à ausência de escritores negros na ficção científica. Octavia Butler, por exemplo, conta que essa foi uma as barreiras que encontrou na sua trajetória literária.
R: Vejo aqui e ali pessoas caucasianas mais e mais interessadas em escrever obras de cunho afrofuturista. Que bom para elas… O que me interessa é que mais e mais pessoas negras, pessoas africanas, se descubram capazes de escrever sua própria história, projetar o seu próprio futuro, a partir de sua própria ótica. Se as ditas grandes editoras não têm interesse em nos publicar, então nos organizamos nós mesmos, ainda que em pequenos negócios, para publicar e difundir novos artistas e escritores. Atualmente, com a massiva difusão da internet, é mais do que possível.
10. Como você entende o Afrofuturismo em sua obra Ritos de passagens?
R: Não escrevi Ritos de passagem com uma intenção afrofuturista, digamos assim. Esta obra, que na verdade é apenas uma introdução a uma série bem mais extensa, possui elementos gritantes de contemporaneidade, apesar de supostamente se passar numa espécie de “passado mágico” de algum outro mundo. Nesse sentido, talvez até possa ser considerado como algo dito afrofuturista, embora eu não tenha escrito com essa intenção. Não sou muito fã de rótulos, mas como precisava de um, o que eu criei para esta primeira obra foi a ficção afrofantástica. Ainda este ano, pela Editora Male, será publicada a minha primeira obra de cunho propositalmente afrofuturista, digamos assim, cujo nome é O Caçador Cibernético da Rua Treze. Atualmente, estou escrevendo o segundo dessa coleção, a qual possui o nome provisório de Afrofuturismo mesmo – prefiro simplicidades. Nesta coleção, os leitores poderão vislumbrar uma imensa metrópole, na qual residem pessoas melaninadas de toda espécie, a qual é governada por sacerdotisas-empresárias paranormais e dominada por arranha-céus, carros voadores e diversas outras máquinas movidas a fantasmas.
12. Indique-nos alguns nomes afrofuturistas.
R: Infelizmente não sou muito bom com nomes. Além dos nomes ditos aqui, na música nacional indico a Ellen Oléria e o Augusto Oliveira. Na análise crítica e na fotografia, indico o William Mumu Silva.
Fonte: Revista A!
Foto: Marco Antonio Fera. (https://www.facebook.com/pretinhomaisquebasico )